O drama do bracinho

O drama do bracinho

Um dos grandes complexos das mulheres com seus corpos é com relação aos braços. Braço bom é só aquele bracinho magrinho, fininho, de preferência só a pele e o osso. Não pode ser gordo. Nem pode ter músculo também, porque mulher musculosa, NOSSA, um horror né, não pode. Também não pode ser velho, ter aquela pelanquinha que o passar dos anos trouxe. Senhorinhas têm que esconder seus bracinhos e dar um tchauzinho contido, pra nada balançar.

Então só mulher magra e jovem, de bracinho fininho pode sair na rua despreocupada com blusa sem manga. Né não?

Bom, não.

Pessoas são diferentes, corpos são diferentes, braços são diferentes. Não existe um braço errado, não existe um braço certo. Braços gordos podem – e devem – desfilar por aí sem mangas, porque ninguém merece se esconder sob camadas de tecido nesse calor infernal.

braço
“Sem mangas e sem medo”

É meio surreal pensar que até pra nossos braços existem um padrão. Na verdade existe um padrão pra cada parte do nosso corpo, inventam que devemos ser assim ou assado, e se não somos desse jeito (Dica: ninguém é, nunca vai ser, porque o padrão é inatingível), inventam formas de chegar lá, ou pelo menos de continuar tentando.

A realidade é que esse padrão inalcançável existe porque mulheres satisfeitas com suas aparência e com seus corpos não geram lucro. Imagina quantas empresas de produtos de beleza e quantas clínicas estéticas iriam à falência se um belo dia todas as mulheres do mundo acordassem contentes com a sua aparência e não mais desejassem modificar, disfarçar ou esconder essa ou aquela parte do corpo? Manter mulheres infelizes e insatisfeitas dá dinheiro pra muita gente.

Naomi Wolf, uma escritora feminista estadounidense, escreveu um livro chamado “O Mito da beleza – Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres”. Nele, Naomi fala como esse padrão de beleza louco oprime as mulheres em seis campos: trabalho, cultura, religião, sexo, violência e fome.  Ela fala que:

“(…) a gordura na mulher é alvo de paixão pública, e as mulheres sentem culpa com relação à gordura, porque reconhecemos implicitamente que, sob o domínio do mito, os nossos corpos não pertencem a nós mas à sociedade, que a magreza não é uma questão de estética pessoal e que a fome é uma concessão social exigida pela comunidade. Uma fixação cultural na magreza feminina não é uma obsessão com a beleza feminina mas uma obsessão com a obediência feminina.”

De fato, uma mulher com fome, infeliz e preocupada com o próprio corpo é muito mais maleável, muito mais fácil de subjugar.

Nossos braços, como parte do nosso corpo, também sofrem com essa pressão pra se adequar a padrão ideal de magreza e juventude. Se você não se adequa, precisa escolher muito bem as roupas pra disfarçar o bracinho. nada de listras, use sempre uma manga longa ou 3/4, o mínimo de volume possível. Nossas opções são poucas. Muitas vezes deixamos de sair e se divertir porque não conseguimos achar nada que “disfarce” esse grande problema. E assim vamos nos privando do convívio social, de ocupar os espaços, vamos comprovando que o lugar de gente gorda é escondida em casa, onde ninguém nos veja.

Eu sei que não é fácil, que é um processo contínuo e muitas vezes doloroso, mas precisamos sair, precisamos ser vistas, precisamos mostrar nosso bracinho por aí, porque ele não é da conta de ninguém, e se alguém se incomoda com nosso braço gordo, ou velho, ou musculoso, ou caído, ou pelancudo, o problema é deles, não nosso. Liberdade aos bracinhos, porque o verão tá aí!

Eu sempre tive problemas com meus braços, mesmo no tempo que eu era magra. Há tempos que eu queria fazer uma tatuagem no braço e tava com um receio de pôr o bracinho pra fora, mas aí pensei que não vou esperar emagrecer pra fazer as coisas que eu quero e gosto, não vou viver esperando uma coisa no futuro que talvez nem venha. Decidi que vou viver agora e aproveitar a vida como eu sou, que é o melhor que eu posso ter. Nem todo dia o pensamento é positivo assim, mas vamos caminhando.

tatuagem
“Soy capaz, soy fuerte, soy invencible, SOY MUJER!”

Porque vai ter braço gordo tatuado SIM!

Quem quiser ler o livro completo de Naomi Wolf, aqui tem a obra completa em PDF: brasil.indymedia.org/…/2007/01/370737.pdf

Vamos falar de privilégio? Vamos sim.

Vamos falar de privilégio? Vamos sim.

Esses dias vi um vídeo que me tocou profundamente e que me fez pensar um pouco em tudo que eu sou, na minha luta e na das minhas companheiras. O vídeo é o seguinte:

Nele, duas mulheres negras, Crystal Valentine e Aaliyah Jihad, falam sobre a solidão da mulher negra, sobre como é ser preterida, inclusive pelos próprios homens negros, em favor de mulheres brancas ou miscigenadas. Como é ter a autoestima minada a cada vez que um cara diz que “não sai com mulheres negras”. É uma fala forte, dolorida e me arrepia toda vez que eu assisto. Mas eu só posso imaginar essa dor, nunca poderei sentir na pele o que é ser uma mulher negra, porque eu sou branca, e ser branca, em uma sociedade racista, carrega uma série de privilégios. Não reconhecer os privilégios que se tem por fazer parte de um determinado grupo contribui para invisibilizar a dor e a luta de muita gente.

Assim como ser branco em uma sociedade racista é um privilégio, existem uma série de outros que precisamos falar exaustivamente, até que entre pelo menos um pouquinho na cabeça das pessoas. Vou aqui enumerar alguns, mas existem vários outros, que não são menos importantes.

Privilégio heterossexual

Alguém tem alguma dúvida de que ser heterossexual é um privilégio? Que poder sair na rua de mãos dadas com o seu amor, trocar beijinhos em lugares públicos sem medo de levar uma lampadada ou ser expulso de um bar ou restaurante é um privilégio? No caso de mulheres lésbicas e bissexuais, o desprivilégio é ainda maior, porque além de sofrerem lesbofobia/bifobia (sim, homofobia é um termo muito genérico que invisibiliza a opressão sofrida por mulheres lésbicas e bissexuais), ainda sofrem com o machismo que é comum a todas as mulheres. Além disso, existem vários e vários casos de estupros corretivos a mulheres não-heterossexuais. Pois é, o mundo é bem escroto.

Privilégio cisgênero

Vamos lá, o que é ser uma pessoa cisgênera? É ser alguém que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer, ou seja, uma pessoa que foi designada mulher e se identifica com o gênero feminino, por exemplo. E pessoas que não são cisgêneras, são o quê? São pessoas transgêneras, ou simplesmente pessoas trans* (o asterisco é pra indicar que o termo abarca uma série de identidades, como transsexuais, travestis, transgêneros, dentre outras). As mulheres trans* fazem parte de um grupo bastante marginalizado, mesmo dentro de movimentos sociais que deveriam acolhê-las, como o feminismo e o movimento LGBT. Ser uma pessoa trans* significa, antes de mais nada, não ser tratada como um ser humano, e sim como algo abjeto, monstruoso, que mal tem direito de existir. É ter negado o direito à educação, visto que nas escolas não respeitam sua identidade de gênero e isso faz com que recebam agressões diárias. É ter negado um emprego decente e precisar se prostituir pra ter o que comer. É ter negado o direito à saúde, já que existem pouquíssimas clínicas especializadas em saúde da pessoa trans*, e nas outras, como exigem sempre um documento, muitas pessoas trans* não querem se sujeitar à humilhação de serem chamadas por um nome que não reconhecem.

Muitas pessoas, feministas inclusive, afirmam que não existe um privilégio cisgênero, já que ser mulher não é privilégio nenhum, ou dizem que não são transfóbicas porque mulher não pode oprimir. Mas vamos pensar um pouco: ser mulher não é nenhum privilégio, é verdade, sofremos diariamente com machismo e misoginia. Mas ser mulher cis é SIM privilégio sobre ser mulher trans*, só o fato de ter sua identidade reconhecida e poder transitar em espaços femininos sem ser escrachada é um grande privilégio. Outra novidade: mulher pode sim oprimir, e eu vejo isso todos os dias, vai dizer que não existe mulher homofóbica, racista, transfóbica? Então vamos parar com esses argumentos rasos só pra não reconhecer o privilégio que tem?

Privilégio magro

Aqui finalmente voltando ao tema deste lindo blog, uma coisa que toda gorda já sentiu, mas que talvez nunca tenha colocado em palavras: ser magra é um privilégio. Ir em uma loja e ter milhares de opções de roupas do seu tamanho pra escolher, sentar em um lugar público pra comer sem temer que alguém venha se meter na sua vida e na sua refeição, passar despreocupada na catraca do ônibus, sentar despreocupada em uma cadeira de plástico, andar na rua e não ser xingada gratuitamente por causa do seu peso, não ser lembrada a cada postagem engraçadinha que diz “marque aqui sua amiga gordinha escrota que [insira aqui qualquer coisa com relação a comida]”, não ser representada na televisão como aquela personagem cômica, desajeitada, virgem, desesperada por um homem, que come a cada cinco minutos, não ser uma categoria de piada, como “piada de gordo”.

Ser gorda é despertar o ódio de todo mundo quando você se ama, quando está satisfeita com o seu corpo, porque o corpo gordo não é e jamais pode ser desejável, se a pessoa é gorda, o mínimo que ela pode fazer é se odiar. E as pessoas fazem isso até sem perceber, em maior ou menor grau de intensidade. A prova é que quando saiu a capa da revista Elle de maio de 2015, com a blogueira plus size Ju Romano, mostrando o corpo gordo, nem retoques de photoshop, parece que o mundo desabou. Choveram comentários horríveis, criticando o corpo e a atitude da moça, querendo que ela se envergonhasse do próprio corpo, isso inclusive vindo de feministas.

300415-elle-plus-size-01

Algumas feministas tem uma relação engraçada com a nudez. Nesse vasto mundo chamado internet cansei de ver fotos de mulheres nuas, enviadas em grupos com essa finalidade, dizendo que fizeram as fotos como forma de se sentirem bonitas; ou ensaios ditos sensuais, que visam empoderar mulheres fazendo elas ficarem bem com seus próprios corpos. Eu particularmente não tenho nadinha contra nudez e acho maravilhoso mulheres amando seus corpos e cagando pro julgamento alheio, mas sabe o que essas duas situações tem em comum? Os corpos fotografados e empoderados eram sempre magros e brancos, bem dentrinho dos padrões. Vez ou outra sai um ensaio de mulheres gordas e os comentários, quando não são o clássico “Nossa, gorda escrota nojenta”, giram sempre em torno de “Nudez não tem nada de empoderadora, porque se a mulher está fazendo um ensaio nu, isso só vai ser bom para os homens, que vão ter material pornográfico de graça por aí” (Pasmem, só vejo esse tipo de comentário quando o ensaio não é com mulheres magras, brancas, dentro dos padrões; ser magra é um privilégio até nisso, veja bem).

Como se toda nudez precisasse, obrigatoriamente ser sensual, ou a serviço de homens. Uma bunda é só uma bunda, um peito é só um peito, uma pepeca é só uma pepeca e essas partes podem ser sensuais ou não dependendo do contexto. Nudez é empoderadora sim, quando o corpo que está la nu foge dos padrões do que é belo, aceitável e sensual. Nudez pode ser empoderadora quando mostra que corpos inconformes, gordos, negros, trans*, com deficiência, também podem ser bonitos, por que não?

3
Foto: Leonard Nimoy

Além desses existem inúmeros privilégios que eu não falei porque não tenho propriedade nenhuma sobre o tema, como o privilégio de não ter nenhuma deficiência (Isso deve ter um nome, mas eu não achei em uma pesquisa rápida pelo google, me perdoem, se alguém souber eu adoraria aprender).

O importante é estarmos sempre atentas às pessoas que nos cercam, ter empatia pela dor alheia e não achar nunca que nossos problemas são maiores ou mais importantes que o do outro. Tratar as pessoas com humanidade e respeito, independente de qualquer coisa, pode fazer esse mundo menos cruel e sufocante para algumas pessoas. Vamos pensar nisso?

Sobre corpo e contradição

Sobre corpo e contradição

“Meu corpo apaga a lembrança que eu tinha de minha mente, Inocula-me seus patos, me ataca, fere e condena por crimes não cometidos.”

As contradições do corpo – Drummond

Há tempos me pergunto se eu teria coragem de um dia escrever esse texto. E se escrevesse, se teria coragem de publicá-lo. E publicado, se alguém iria ler ou se importar. Bom, criei coragem. Escrevi e estou agora publicando, não sem uma ponta de ansiedade, não sem um frio na barriga, mas publiquei. E escrevo aqui de uma coisa que sempre fez parte da minha vida desde que eu me entendo por gente, mas de uns anos pra cá, vem se tornando um sofrimento maior do que o que eu estava acostumada: a preocupação com o meu corpo. Não lembro nenhum momento da minha vida em que eu estivesse satisfeita com ele. Sempre me achei gorda, sempre achei que precisava perder uns dois ou três quilos, fiz algumas dietas e nunca gostava do que via no espelho. Hoje em dia olho fotos minhas da época do ensino médio e vejo que sim, eu era magra. Obviamente nunca tive um corpo de modelo, mas eu era magra e mais dentro dos padrões do que fora deles, mas nunca me senti assim.

Desde muito cedo eu (assim como todas as mulheres) escuto comentários sobre o meu corpo, vindos inclusive da minha própria família. Muitos parentes, próximos ou distantes, sempre se sentiram no direito de opinar sobre as minhas formas, sobre o que eu comia ou deixava de comer, a me policiar, a me incutir uma preocupação que na época eu nem sabia que tinha que ter, e olhe que eu nem era uma criança gorda. Lógico que não era por maldade, mas mesmo assim doía. Já na universidade, passei por um período de estudar muito e comer mal, cheguei a pesar 48kg, fiquei quase no limite do IMC, e ainda assim não achava que meu corpo estava ok. Nunca tinha feito grandes esforços pra emagrecer, mas sofria a cada vez que passava por uma farmácia e tinha a ideia de me pesar. Ainda durante a graduação, passei por uns momentos difíceis na vida e resolvi escrever um diário. Esse janeiro encontrei ele por acaso e fui reler o que eu tinha escrito; além das preocupações corriqueiras, uma era constante: meu peso. Linhas e mais linhas de uma pós adolescente maldizendo o próprio corpo, pensando em mil dietas e, pasmem, desejando uma anorexia. Foi extremamente doloroso pra mim ler aquelas palavras e constatar que tantos anos depois eu ainda continuava com a mesma visão pessimista sobre mim.

Sim, eu mudei muito desde que escrevi aquele diário, aprendi muito, cresci, conheci o feminismo, desconstruí milhares de pensamentos tortos que eu tinha, aprendi a ter empatia pelas pessoas, principalmente pelas mulheres, minhas companheiras. Aprendi sobre gordofobia, aprendi a sair da caixinha e expandir minha noção do que é bonito, a ver que corpos gordos também podem ser lindos. Só não aprendi a ter empatia comigo mesma. De lá pra cá engordei bastante, fiz dietas loucas, perdi um pouco a saúde, emagreci 10 quilos em dois meses e engordei tudo de novo e um pouco mais. Nesse meio tempo, ouvi mais do que nunca comentários sobre o meu corpo. Quando emagreci, eram só elogios, pouco importavam se minha saúde estava fodida, se eu estava com um mau humor infernal ou se eu estava extremamente infeliz, o importante era que eu estava magra e merecia os parabéns por isso. Depois de emagrecidos os 10 quilos, fui a um nutricionista ver se eu estava ok, se minha saúde estava em ordem, etc. Ele me pesou, me mediu, me olhou de cima a baixo, fez mil cálculos e chegou à conclusão que eu ainda precisava perder uns 5kg, que o ideal era eu pesar 47 quilos, mesmo que em toda a minha vida adulta, nem nas épocas mais magras, eu tinha chegado a esse peso. Passou uma dietinha e disse que eu voltasse dali a um mês, sorri mandando mentalmente ele se foder e nunca mais voltei, não estava mais afim de dieta, tinha chegado num peso razoável e estava me sentindo relativamente bem.

Algum tempo depois comecei a engordar de novo e soube que não teria mais ânimo pra fazer outra dieta, então deixei pra lá, principalmente porque eu estava em período de seleção de mestrado e a última coisa que eu queria me preocupar era com isso. E começaram novamente os comentários: “meniiiina, o que aconteceu contigo, como tu tá gorda!”, “Tá precisando parar de comer, hein?” “Já vai comer de novo?”. E a cada comentário eu morria um pouquinho por dentro, apesar de não exteriorizar isso. A cada comentário eu perdia um pouco mais a vontade de ir à praia porque ia ter que usar biquíni, a cada olhar torto eu desistia de sair de casa porque a roupa não ia ficar tão bem, a cada julgamento eu evitava de ir a lugares que eu sabia que ir ter gente conhecida porque sabia que eles iam falar. Perdi bares, saídas, festas de família, passei a me esconder, a achar que todo mundo na rua estava me olhando, que os conhecidos estavam comentando. Minha autoestima, que nunca foi lá essas coisas, chegou a níveis mais baixos do que o da Cantareira. Passei a ter vergonha de mim, não apenas por causa do meu corpo, mas pela contradição de ser feminista, tão militante, com um discurso tão body positive mas que não conseguia aplicá-lo a mim mesma. E isso me doía, me angustiava, eu me sentia hipócrita. Não é fácil subverter uma vida inteira de ideais machistas, surreais e gordofóbicos jogados todo dia na sua cara.

Escrevo aqui esse texto numa tentativa de auto aceitação, numa tentativa de me amar mais e me importar menos. Já passei 25 anos da minha vida me odiando, e o último ano me escondendo, preocupada com a opinião de quem não quer o meu bem nem está pagando minhas contas. Então apresento a vocês, este é o meu corpo, o meu novo corpo, pode não ser lindo e perfeito, pode estar completamente fora dos padrões e pode incomodar alguns olhos destreinados, mas é o MEU corpo, é o único que eu tenho e é ele que me permite viver. Corpo, não está sendo (nada) fácil, mas estou tentando te aceitar, vamos fazer as pazes?